Por uma arte revolucionária independente – notas sobre política, literatura e comunidade
Com texto de Mayara Dionizio
Em maio de 2025 a sobinfluencia completa 5 anos. Em comemoração ao nosso aniversário, reeditamos nosso primeiro livro, Por uma arte revolucionária e independente, manifesto artístico e político de Leon Trotsky, André Breton e Diego Rivera. A reedição, que está em pré-venda em nosso site, conta com um ensaio introdutório de Michael Löwy e com nova tradução de Mayara Dionizio, pesquisadora e tradutora com quem temos o prazer de colaborar. Abaixo, sua nota para o livro.
Nota da Tradução
Mayara Dionizio
Le langage a été donné à l’homme pour qu’il en fasse un usage surréaliste
(André Breton, Manifesto surrealista, 1924).
Existe uma passagem de La communauté inavouable (1984), de Maurice Blanchot, mais precisamente em um capítulo intitulado “La communauté littéraire”, em que se entrelaçam as ideias de comunidade, surrealismo e amizade. Nada mais apropriado ao texto aqui publicado e as relações que o sustentam. Assim, falo tanto da amizade de Leon Trotsky, André Breton e Diego Rivera – como se pode acompanhar na apresentação deste livro escrita por Michael Löwy – quanto da amizade que se movimenta nas veias da sobinfluencia. “La communauté littéraire” é a abertura para uma cena imaginária assim como possível, e que deve ter ocorrido muitas vezes em diversos lugares e com diferentes composições, entre os surrealistas [1] e em vistas de uma comunidade.
Como Blanchot escreve: “Podiam-se, a rigor, reunir em torno de uma mesa (isso evocava os participantes apressados da Páscoa judaica) as poucas testemunhas-leitoras que não tinham todas a consciência da importância do frágil evento que as reunia, tendo em vista os formidáveis riscos da guerra na qual estavam quase todas envolvidas, de várias formas, e que as expunha à certeza de um pronto desaparecimento” (1984. p. 21, tradução nossa). [2]
Tal fragilidade do evento era marcada evidentemente pela ameaça nazifascista da guerra em curso, que também os impulsionavam a uma espécie de alea que os colocavam face à possibilidade de uma comunidade. Diferente do que é habitual imaginar a partir do termo comunidade como uma comunhão unificada, fusional por vezes, mediante ao desaparecimento, a própria comunidade é a marca de uma insuficiência e de um acontecimento que só pode ocorrer enquanto movimento, fluidez, adesão momentânea. Movimento no qual se adere acontecimentalmente, no risco e no imprevisto de um desaparecimento do presente, do desejo, do pertencimento.
É nesse sentido que gostaria de orientar as relações entre a exigência da escrita e a amizade. Nesse sentido, a existência fugaz da comunidade se sustentaria no apagamento próprio à escrita: quando escrevo, no instante seguido, desapareço, aquilo já não está mais em mim, mas no papel, no mundo, em outrem; quando leio, leio as palavras escritas por outrem em uma língua que não pertence nem a mim nem a ele, mas a si mesma; quando escuto, escuto aquilo que me atravessa de um ponto a outro e é soprado adiante. Todo esse flanar da literatura, ao qual não se pode fixar, agarrar, pontuar, é o que nos envolve na comunidade literária sem que sequer nos saibamos membros; e quando nos sabemos, ela já nos escapa. É aí também que está a amizade. Georges Bataille escreve a respeito dessa exigência: “Minha conduta com meus amigos é motivada: cada ser, acredito eu, é incapaz de alcançar sozinho o extremo do ser”(1943, p. 42). [3] Ou seja, essa exigência de se abrir ao outro para com ele e a partir dele atingir o extremo do ser é marcada por uma experiência que é compartilhada, comunicada. Contudo, tal comunicação pela palavra é uma abertura infinita em seu movimento, de mim para outrem e assim por diante. Comunicação que tanto aproxima quanto distancia.
Na ocasião desta mesa posta, em que era servida a experiência literária como elo que a todos tocava e diferia, colocando todos face ao desconhecido que é exigido pela amizade, Bataille estava embriagado: “Eu já tinha bebido muito vinho. Pedia a X que lesse uma passagem do livro que eu trazia comigo, e ele a lia em voz alta (ninguém que eu conheço lê com a mais dura simplicidade, com mais grandeza apaixonada do que ele). Eu estava muito bêbado e não me lembro mais exatamente a passagem. Ele mesmo havia bebido tanto quanto eu. Seria um erro pensar que essa leitura feita por homens embriagados é apenas um paradoxo provocativo... Acho que estamos, um e outro, unidos nisso que somos abertos, sem defesa – por tentação – às forças da destruição, mas não como audaciosos, mas como crianças que jamais abandonam uma ingenuidade covarde”. [4] Nesta cena, reparem, o amigo leitor não é nomeado a não ser pela consoante X. Em um só gesto, Bataille tanto o neutraliza quanto o descreve como um exímio e incomparável leitor. Todos que estavam presentes saberiam, ao ler essa passagem batailliana, de quem se tratava. É que esse leitor, ao mesmo tempo, prefigura a amizade e o amigo. Ele/Ela, a amizade, pode ser reconhecida na distância, no desconhecimento, sem que os nomeemos. É como se a condição que a amizade nos impõe fosse desconhecer, manter o enigma intransponível da alteridade, a quem nos sentimos ligados por ela.
O livro, dessa forma, se torna o elemento constitutivo da amizade, da comunidade e de sua exigência. Por haver mesmo uma relação com o desconhecido, anônima, pois se dirige a todos e a ninguém, ele opera uma tessitura entre aqueles que nem mesmo se conhecem; aqueles que estão subtraídos à ideia desse pacto que fizeram ao lê-lo. Ou seja, essa experiência que constitui a amizade anônima em torno do livro é também aquela que possibilita aquilo que Bataille chamou de comunidade dos que não têm comunidade. Assim, longe de se reunirem em prol de uma unidade, se reúnem pelas suas diferenças, uma vez que já estavam a errar à margem de qualquer comunidade positiva. [5]
É assim que me aproximo dessa amizade enquanto movimento anônimo e impessoal. No surrealismo, por mais que se reconhecessem como um grupo, a própria adesão a ele era como uma contra adesão a um grupo, mas antes a uma experiência plural e múltipla. Breton, nesse contexto, configurava não um líder, mas alguém que deu coerência à existência do movimento. Alguém que conseguiu fazer do surrealismo: “o Outro de cada um e, na atração desse Outro tido por uma presença-ausência viva (um além dos dias no horizonte de um espaço desconhecido sem um além), vivê-lo com amizade no sentido mais rigoroso desse termo exigente, ou seja, fazer da afirmação surrealista uma presença ou uma obra de amizade” (1969, p. 14). [6] Que é também o que vemos em seu manifesto de 38 com Trotsky, liberação da arte do logos do Estado, através da amizade e da escrita, para o desconhecido em que ela se realiza. Já com “Contre-Attaque”, por meio de panfletos, a amizade e a exigência da escrita explodiram pelas ruas no maio de 68 francês. Um grupo que existia senão nas ruas, na luta e que não se filiava a grupos políticos por ter sempre como fundamento a insurreição. Isto é, se a insurreição é o imediato que irrompe, no caso do “Contre-Attaque”, essa ruptura emergia na rua, no fora.
Qual seria o futuro desses grupos, dessas pretensas comunidades que existem a nós por suas ausências? Se menciono também a experiência que foi o “Contre-Attaque” ligando-a às noções de amizade, escrita e comunidade, é porque ela se aproxima daquilo que suscitou o surrealismo. E “talvez o futuro do surrealismo esteja ligado a essa exigência de uma pluralidade que escapa à unificação, transborda o todo (ao mesmo tempo em que supõe e reclama sua realização) e agora, face ao Único, mantém incansavelmente a contradição e a ruptura” (1969, p. 494, p. 9). [7]
A partir de tudo dito até aqui, nessa tentativa de aproximar e mostrar as relações entre a busca de uma comunidade – sempre por vir – ligada à amizade e a exigência da escrita enquanto possibilidades de um mundo outro, me reaproximo daquilo que é a sobinfluencia. Poderia dizer que ela é mais do que uma editora, mas isso seria injusto e contraditório. Se a possibilidade de uma comunidade é sempre buscada através da amizade e de uma exigência da palavra que escapa à fixidez do sujeito e da realidade que nos é imposta politicamente-epistemologicamente-ecologicamente-economicamente, na sobinfluencia esse mundo se abre a esse pacto impessoal e de insurreição. Nos últimos cinco anos, imbuídos dessa exigência, a sobinfluencia foi um espaço de reunião, de promessa de uma comunidade que, sem tentar suprimi-la a definindo, se dedicou a abri-la à multiplicidade da palavra político-literária, da música subversiva e radical, de suas feiras, do design, das conversas que promove em seu espaço.
A tradução de Por uma arte revolucionária independente, para mim, reafirma essa exigência de uma comunidade. Traduzir esse texto é operar nessa alteridade que é própria à linguagem literária – sempre diferindo o seu sentido – e contribuir com a cisão de um rasgo pelo qual o surrealismo possa hoje, e em seu futuro, se multiplicar.
Em 2023, no dia 05 de março, enviei um email à sobinfluencia. Logo depois, fui convidada a sentar à mesa, tal como faziam Breton, Bataille, Trotsky, Diego Rivera, entre outros. Obrigada Fabiana, Alex e Rodrigo.
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NOTAS
[1] « Communauté idéale de la communication littéraire. Les circonstances y aidèrent (importance de l’aléa, du hasard, du caprice historique ou de la rencontre ; les surréalistes, André Breton avant tous les autres, pavaient pressentie et même théorisée prématurément) » [Comunidade ideal da comunicação literária. As circunstâncias ajudaram nisso (a importância da alea, do acaso, do capricho histórico ou do encontro; os surrealistas, André Breton antes de todos os outros, tinham pressentido e mesmo a teorizado prematuramente] (1984, p. 21).
[2] « On pouvait, à la rigueur, réunir autour d’une table (cela évoquait les participants hâtifs de la Pâque juive) les quelques témoins-lecteurs qui n’avaient pas tous conscience de l’importance de l’événe-ment fragile qui les réunissait, au regard de l’enjeu formidable de la guerre auquel ils étaient presque tous mêlés, à des titres divers, et qui les exposait à la certitude d’une prompte disparition ».
[3] Ma conduite avec mes amis est motivée : chaque être est, je crois, incapable à lui seul, d’aller au bout de l’être.
[4] «... J’avais déjà absorbé beaucoup de vin. Je demandais à X de lire dans le livre que je traînais avec moi un passage et il l’a lu à haute voix (personne à ma connaissance ne lit avec plus de dure simplicité, avec plus de grandeur passionnée que lui). J’étais trop ivre et ne me rappelle plus exactement le passage. Lui-même avait bu autant que moi. Ce serait une erreur de penser qu’une telle lecture faite par des hommes pris de boisson n’est qu’un paradoxe provocant... Je crois que nous sommes unis en ceci que nous sommes l’un et l’autre ouverts, sans défense – par tentation – à des forces de destruction, mais non comme des audacieux, comme des enfants que n’abandonne jamais une lâche naïveté ».
[5] BATAILLE, Georges. Œuvres complètes. Paris : Gallimard, 1973, tome V.
[6] « l’Autre de chacun et, dans l’attrait de cet Autre tenu pour une présence-absence vivante (un au-delà des jours à l’horizon d’un espace inconnu sans au-delà), de le vivre avec amitié au sens le plus rigoureux de ce terme exigeant, c’est-à-dire de faire de l’affirmation surréaliste une présence ou une œuvre d’amitié ».
[7] « Peut-être le futur du surréalisme est-il lié à cette exigence d’une pluralité échappant à l’unification, débordant le tout (en même temps qu’elle en suppose et en réclame l’accomplissement) et maintenant, face à l’Unique, inlassablement la contradiction et la rupture ».